sábado, 27 de julho de 2013

Cavando um vazio o rasgo se desenha





A obra de Hermes é, sobretudo, convite à busca. Busca pelos lugares menos previsíveis de nossa capacidade de formular: gestos, falas, imagens. Convite à busca de um não lugar que forma-se no entre. Na fissura proposta por Barthes ou no vazio concebido por Didi-Hubermann, busca-se uma significação que se esconde em nossos avessos, no lado de trás, nos sulcos da matéria do papel. Na subversão do papel que deixa de ser um onde para ser!
Na contramão de um tempo que corre rápido demais, que custa dinheiro demais, que escorre em dias não notados, nos devolve a todos, e primeiro a si próprio, o prazer dos lugares o dos tempos da infância. “Às vezes, é necessário puxar as redes para observar o movimento do mar”, afirma Hermes pescador. Eu, criança, acompanhava às vezes meu avô quando ele ia pescar. Não me importavam muito os bagres que depois viravam ensopado para o almoço, ou os papa-terras deliciosamente fritos por minha avó. Creio que, no fundo, o que me interessava era mesmo olhar o mar. O eterno movimento de ir e vir, de ser sempre diferente, sempre imprevisível, e, talvez por isso mesmo, ser sempre o mesmo infinito.
Hoje, penso que o puxar das redes que Hermes nos propõe, é puxar as redes do tempo, parar um pouco o relógio para olhar para dentro: nossos mares interiores, nossas lembranças, nossas infâncias, nossos retalhos, nossos pedaços, nossos rasgos. Nossas imagens internas que se fazem de pedaços rasgados também. Que se formam – curiosamente – não para além do rasgo, na superação do trauma do rasgo; mas por causa do rasgo. Por causa do rasgo, vivemos todos da possibilidade de lidar – como faz Hermes nesses desenhos rasgados – com a imprevisibilidade: a poesia do movimento.
Hermes valoriza o gesto, mas, nesta série, escolhe radicalizar – e nisso opera uma forte desconstrução ideológica – a concepção do gesto na busca daquilo que, de fato, elabora um desenho: a mão. Não é a decisão pensada, mas a mão quem desenha. A forma não está posta, não é conhecida de antemão. A mão que rasga não controla, é conduzida pelo desejo da descoberta. Descoberta no rasgo. Rasgar-se para dentro. Rasgar a forma é elaborar a escuta de seu próprio gesto. Reconhecer seus impulsos. Quais são os desejos que se escondem por baixo da polpa do papel? Que medos, que procuras conduzem a mão que rasga? Mão que não controla, mas descobre. O gesto, descontrolado, em silêncio, na sutil música da polpa que se separa do papel, elabora o rasgo do desenho. Na contramão de nossa ansiedade de tudo controlar, de tudo possuir, de tudo decidir, abre-se o espaço do desenho que, como em muitas obras de arte, se elabora no entre. Entre a vontade de controle e o desejo do gesto. Entre a dureza da decisão e o acaso da energia posta em movimento. No desejo que carrega a mão, quase como uma carícia internalizada nas paisagens do imaginário, elabora-se o desenho do entre. Entre ontem e hoje. Em um entre sempre impermanente, Hermes evita colar. Seus papéis rasgados, sobrepostos, justapostos, intercalados, associados, são delicadamente amontoados, compostos em obras de pedaços soltos que podem se reassociar, realinhar, recompor, predispor, reorganizar num movimento infinito de um sempre que é sempre o mesmo sendo sempre potencialmente outro. Diferença em potência permanente.
Hermes, como o mar, não finaliza. Não acaba. Apenas nos abraça, nos envolve com sua imagem no tempo de três ondas e meia. Ondas que nos convidam a revisitar nossos próprios lugares de infância, nossas lembranças, nosso próprio imaginário. E, por que não, também nossos medos e segredos. Depois, se recolhe novamente. O que virá carregado pela próxima onda? Valentina e Louise bem o sabem: em algum lugar de nós, a infância dura para sempre.
O texto acima foi escrito para a apresentação da exposição "Meus papéis - rasgos e aderências na linha narrativa", exibida por Hermes Bernardi Jr. em maio/junho 2013 no Centro Municipal de Cultura/Atelier Livre de Porto Alegre. A exposição fez parte dos eventos de lançamento do livro "Conchas", de sua autoria, publicado pela editora Edelbra.
Para maiores informações sobre o livro Conchas, acesse: http://loja.edelbra.com.br/conchas.html
Para conhecer mais sobre o trabalho do Hermes em Arte e Literatura, acesse: http://www.hermesbernardijunior.net/