segunda-feira, 12 de junho de 2017

Carlos Drummond de Andrade - II

A certa altura, perdi o fio deste lugar inspirado que me guiava. Quando foi exatamente, não sei. Perdeu-se a vontade de poesia, de lê-la, de pensá-la, de senti-la, dispersa que fui pelos dias de céu azul. Já dizia Bachelard que são os dias de chuva os dias de ler poesia. Dias depois a chuva e frio voltaram, mas não bastaram para recuperar O estado poético em que me encontrava, aquele em que as palavras fluíam, desciam em cascata como a chuva pelas frestas do telhado. Choveu muito e sem parar naqueles dias. E a necessidade de terminar a leitura – não silenciosa – tornou-se algo com o peso de qualquer trabalho braçal, mas com o incômodo da exigência mental. Da segunda categoria das aflições no processo criativo, apresenta-se a aflição de tornar a poesia, a escrita, a produção, algo pronto, com alcance definido. Passara-se a angústia daqueles dias de existência. A monotonia das refeições era somente monotonia quando deixava de ser o que se contrapunha à angústia. Quando tudo no mundo achava se lugar “era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, pois a vida completa e bela e terna ali já estava”. Esse tempo, porém, que me invade, seria o que invade o poeta? 
Sendo ou não o mesmo tempo, “Versos à boca da noite” marca em vários simbolismos e fatos a percepção de certa quantidade de tempo vivido e de percepções e aprendizagens, algumas adquiridas, outras perdidas. A compra da vida em sal, rugas e cabelo, marca definitivamente que o poeta algo dá para viver. Nesse sentido, o poeta finalmente aproxima-se dos outros homens, da humanidade. Vertemos todos lágrimas, ganhamos todos rugas e perdemos cabelos, tanto mais quanto mais vivemos. Desta maturidade anunciada do poeta, não somente a poesia, mas o viver de todos nós, compõe-se de dádivas (achados, encontros) e doações (trabalho, suor, lágrimas). O poeta indica, certo equilíbrio na vida. E, na compreensão de tal equilíbrio, um derradeiro, final apaziguamento.

sábado, 10 de junho de 2017

Carlos Drummond de Andrade

Sim, agora fica claro que o sujeito de classe de roupas brancas é poeta.
Poeta e tempo no impasse entre o hoje e a eternidade que nunca é? Posto que do tempo só percebemos o agora, é mais esperança do que infinito o que nos faz acreditar que tempo e vida prevaleçam a nossa curta existência. Recheado da possibilidade de permanência e recorrência da vida não retenho nem a minha própria e do tempo só sinto sempre – de fato – hoje.
Se insinua que as coisas mudam de estatuto na mão do poeta – até as palavras adquirem corpo e pele – as coisas tornam-se vida nas mãos do poeta. É a relação dele com elas, não apenas o simples existir delas que as dignifica. Há algo de pretensioso neste poeta? Alguma arrogância? Ou apenas tentativa de sentir-se menos diminuído diminuindo as coisas? Pergunto ao poeta. Mas ele cala e se esconde sob os sulcos crispados da face.
Há uma tensão interessante; há poemas em que o sujeito coloca o cotidiano como uma espécie de alento e de peso a contrabalançar a angústia emocional e existencial dele próprio. Neste poema, mais do que em muitos outros, o que o poeta faz é reivindicar um estatuto da poesia através da apresentação do sujeito poético. Não é o cotidiano que lhe salva, é a própria poesia enquanto olhar que lhe permite lançar sobre este mundo que o cerca. Há uma particular e sensível linha de equilíbrio sobre a qual anda o poeta a contrapor e sustentar em oposição suas angústias e a compra do jornal e do leite. É de seu olhar angustiado sobre o mundo que nasce a poesia, não das palavras sem pele, das palavras formais e em estado de dicionário, estas, são as palavras das palavras-cruzadas. Sim, meu avô todas as manhãs as preenchia na folha de jornal dobrado enquanto comia pão de centeio com salame e queijo e sorvia lentamente sob o bigode café com leite em grossas e antigas xícaras de porcelana arrendondada. Sentava à cabeceira da mesa. Todos os dias. Não havia poesia em suas palavras. Creio que as palavras lhe faltavam. Mas me ensinou a apreciar o cheiro da areia, a imensidão do mar. Me fez amar sem exigências até que atingi a puberdade e amar, lamentavelmente, imperiosamente, tornou-se questão de gênero. Não deixei de ama-lo jamais, sinto sua falta até hoje, em cada domingo, em cada dia de praia, cada jogo de general, cada caipirinha, cada pastel de marisco. Mas, criou-se a distância dos amores recalcados entre nós. Um continente inteiro nos separou no momento da despedida. Baby, ele me chamava. Do mundo de meu avô, afinal creio que pouco sei, posto que tanto se escondia nas palavras que soletrava, nas marcas densas, retas e belas que deixava nas folhas do jornal Correio do Povo.
Como podem afinal meu avô e o poeta tanto terem em comum? E haverá também certa dose de traição nesta exposição não publicada de minha dificuldade em escrever o que deve ser escrito que se equilibra, e cai, com o estrondo do possível no chão de minha vida? A poesia é ocupação: ação de fazer, constituir. Não é inspiração. É labuta diária. Há nela a necessidade do esforço repetido, cotidiano da concretude das ações manuais “e eu sempre acreditei que havia música em seus dedos e poemas de amor em minhas roupas escritas” já havia dito Cecília. Há valor de trabalho, manual mesmo, na poesia. É neste curioso limite que ela se move, entre o concreto e o invisível, entre o real e o imaginário, entre o umbigo e a fantasia, morte e vida.
Sim, sei, caro poeta, que é a tentativa de encontrar-te no fundo de ti mesmo que te afasta de mim, e que esta distância só se cria e se alimenta do amor – ou seu desamor – refeita em ódio. Teu ódio não é teu. É o fermento que cresce sobre tua fadiga de amar. Tua solidão infinda. Que sobrevive e se consola em poemas e xícaras de chá, mas não se supera jamais. Vives, afinal, de movimento. Vives da tensão infinita entre desejar e ter, reter e perder, querer e perder: amor, medo, vida e morte.