domingo, 21 de setembro de 2014

Und dann there's the Hochzeit 2

Não havia nele um pingo de sutileza investigativa. Talvez justamente porque era disto que se tratava: investigar as sutilezas mais inauditas, as mais tênues. Ela, por outro lado, era especialista na organização de todos os ditos, papéis e números inclusive, que faziam parte de suas vidas. Completavam-se de maneira ímpar. Mas, às vezes, ela estava em momento de sequer intuir que certas sutilezas indeléveis na vida havia. Enquanto isto, dele os papéis se acumulavam e a cozinha se tornara o reino abandonado da profusão de potes plásticos. Ela, eles achavam, era capaz até de prever o futuro, mas nem sempre sabia se era nele ou no passado que estava encantada, se era por estar absolutamente presente na profundidade de seu agora. Mas havia, às vezes, esses momentos em que ela conseguia perceber exatamente onde ele estava, ou estivera um dia. Estaria amanhã. Chegavam-lhe como brisa que entra de repente pela janela. Como o frescor brilhante das manhãs de primavera. Chegavam-lhe recheados de palavras que às vezes se organizavam e encontravam lugar rapidamente sobre o papel. Havia algo de epistolar entre eles, ele dissera certa vez. E outras vezes, escreviam cartas. Mas havia também aqueles momentos – eras que eram por vezes – em que estavam em lugares absolutamente distantes, incomunicáveis. A vida era mais simples para os amantes, encontravam-se simplesmente na carne. Eles tinham uma vida marcada por desencontros e momentos iluminados que ainda não controlavam. Ela se perguntava, enquanto escrevia, porque parecia que melhor entendia quando transferia, como se não falasse de si, embora de algum em si o começo da frase sempre partisse. Ainda não havia encontrado teoria literária que lhe explicasse, talvez nem fosse preciso. Precisaria? Entender por que sua escrita era recheada de tantas oposições, tanta indeterminação, tanta instabilidade. Recheava-se de por outros lados, talvezes e sempre que ele começava (senão, geralmente) uma conversa íntima entre eles, sua primeira resposta era: – Não sei. Lembrava, porém, de não ter dito não sei quando ele lhe dissera que não queria uma relação à distância. Ao invés disso lhe perguntou: – O  que sugeres? E ele de alguma forma respondeu: – Acho que devemos morar juntos. Meter os peitos, ou melhor, dar um peitaço, ele disse. Mas havia intranquilidade naquele peito, ela sabia. Ele nem sabia de suas limitações a quilômetros de distância. Daquela cerca que ele criara para se proteger da vida e da qual raramente saia. Costumeiro era vir ao seu encontro como se carregasse uma mala em cada mão. Não, não eram malas de sua mudança. Ou eram. Numa carregava suas dores passadas que ia descobrindo pouco a pouco. Na outra havia alguma dose de desejo embaralhada com um resto de esperança. Às vezes ela tinha a impressão de que a esperança dele era apenas um conceito. Não chegava a ser uma esperança molhada daquelas com que a gente encharca o peito. Gostavam tanto de água, de nadar sob o céu azul ou mesmo no céu nublado. Ela achava-se especialista em porta-malas e bagagens. Achava sempre um jeito de fazer tudo caber dentro do espaço que podia carregar. Organizava papéis e armários. Mas ele, ele parecia estar mais próximo dela – pelo menos ela assim sentia – quando ela se desprendia de qualquer coisa, de quase todas as coisas. Quando mais do que desejar, de fato saía de casa sem bolsa e até sem chave. Coisa que só era possível quando com ele estava. Ele não gostou. Lhe chamou a atenção a certa altura para o fato de que ela deveria carregar suas próprias chaves. Num plano bem prático, ela ficou triste por ver-lhe reivindicando que não tivesse tanta liberdade. Mas sabia da profundidade das metáforas presentes nos pequenos atos do dia a dia e entendia perfeitamente agora o que ele de fato lhe dizia. E, como sempre, em alguma medida, ele tinha razão. Como sempre, em alguma medida, ambos tinham sempre razão. Mas desconfiava também que era por vezes razão demais. Poderia ser diferente? Talvez, à medida em que ela o ajudasse reorganizando as malas, separando os conteúdos em sacos e sacolas menores, dividindo o peso, diluindo a intensidade. Talvez lhes ajudasse se ela pudesse também organizar – sem pressa, sem precisão – sem necessidade imperiosa, seus armários. Essa parte sim seria difícil. Havia dois armários de roupas na casa, era um apartamento de fato, mas como falar do lugar em que mora o coração com essa palavra? Para ela o lugar deles era e seria para sempre casa, mesmo que morassem em um apartamento em andar baixo, em prédio sem elevador, bem pé no chão. Continuava, curiosamente, a sonhar com o que ele chamava de sobreposição de tempos: o apartamento dela e o dele miscigenados. Talvez acontecesse porque ela nesse momento numa casa morava. Esta, porém raramente era seu lugar de encontro. Encontravam-se, de fato, no apartamento dele. Algo chato, ela pensava. Afinal, era uma casa que desejavam. Uma casa antiga talvez com aqueles maleiros amplos de armários embutidos. Seria por isso que ela tanto gostara daquele primeiro apartamento em que com ele morara? Ele lhe recebera tão aberto naquela vez. Abandonara, para as coisas dela, um armário inteiro. E ela, em retribuição, organizou para ele o armário porta, armário-quarto da cozinha. Maleiros que apenas existiriam para colocar malas vazias. Malas recheadas de desejo sem peso de futuro, com futuro sem peso de desejo. 
"[...] abandonar a pulsão do saber, e contentar-se do savoir-faire. A personagem submete sua inteligência ao fazer, ou melhor, ao savoir-faire, que está na base ao mesmo tempo de qualquer construção artística e de nossa convivência com o inconsciente. Em outras palavras, a razão se submete às mãos ou ao corpo considerado como uma força de fora, para descobrir o enigma escondido no rochedo. O gozo do corpo na arte não esconde mais, mas anuncia a verdade artística. Reviravolta total da situação." Philippe Willenmart

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

G.H. 1

Uma parte de mim se recusava a voltar. Se não recusava, pelo menos não desejava a volta. A volta já não era mais apenas volta para casa, ou sua casa já não era mais exatamente seu lugar. Condensados na casa, incrustados no tempo feito o mofo nas paredes estavam velhos hábitos. Condensadas formas de perceber, reagir e interagir com o mundo. Na casa, era toda enraizada – perdera o gosto da linha de horizonte, da perspectiva ampla. A casa era sólida, era sua. No papel. Com o passar do tempo e a soma das viagens, modificava-se o voltar. No começo, era voltar para seu lugar, para seus modos, jeitos, comidas, horários, confortos. Voltar a casa era voltar a seu eu. Talvez o que já não desejasse era voltar a esse eu que parecia tão antigo quanto o tempo. O que no começo era sua zona de conforto aos poucos começava a torna-se zona de recusa, zona de afastamento. Preferia até estar no desconforto emocional de outros lugares, por mais que esses também necessitassem emergir de décadas de águas passadas, choros honestos e lágrimas mesquinhas. Encontrava-se em um lugar onde sentia que já não era mais, e ainda não sabia o que era, ou o que seria. Era antes das eras, feito G.H.

Und dann there's the Hochzeit 1

Gabriel Zehender, "Retrato de um matrimônio", óleo sobre madeira, 1525.
Em: http://www.museothyssen.org/en/thyssen/home


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Os lugares por onde ando hoje mapeados já estão 
num desenho realizado por ti. 
Tantos caminhos para mim encurtaste com teu percurso, tantas distâncias se aproximam, 
tantos sólidos diluem-se em fluidez. 
Todos os rios do mundo, 
todas as ruas da cidade, 
todos os meandros de um coração.

Detalhe da obra "Das estrelas e de seus olhos" executada por Leonilson em 1991.