terça-feira, 23 de maio de 2017

Hemingway

Digressão temporal e ponto. Tinham a incrível capacidade de colocar a nu o coração um do outro.  Amavam e sofriam, beijavam mordendo e o inverso na mesma medida. Para eles, comprar frutas nunca era apenas comprar frutas. Nunca era comprar, era frutas. Entre eles havia fios de alta tensão: de medos, de palavras, de escutas, de desejos. Ele lhe tornava imperioso, porque ela assim o amava, ouvi-lo ultrapassando as orelhas de seus pensamentos e sentimentos mais rasos. E esta escuta lhe pedia escrita. Às vezes, cartas, outras vezes, isto. Porém havia certo medo – certa intuição de uma ideia de traição na exposição nua nas folhas em branco. E pensava se deveria disfarçar, esconder, fugir na escrita de si, escrevendo sobre o outro. Mas havia generosidade, pensava. Era generoso o poeta que, ao acessar seus próprios aspectos ou pulsões de origem subjetiva, ao torná-los impulso de criação, ao referir-se a um si mesmo, a um eu ainda que fictício, não era, por escolha, apenas um simples os outros. Escolher falar de si, falar como si, opunha-se à escolha de um eles que destensionaria a relação entre o sujeito e o mundo. Diluíam-se as angústias ao terceirizar-se o olhar, ao apresentar o sentir do humano como algo que é visto de fora por alguma consciência ou deidade sobre-humana. Não, não; era humano o sofrimento. Humano e sofrimento, ponto. A angústia, afinal, só é apresentada em toda sua funesta e densa dimensão quando se trata de nossa própria angústia. Nada se parece mais com a leitura de seu próprio diário – tenha ou não já sido escrito – que a narrativa da angústia em primeira pessoa. Não, nem pense que depois disso vou profissionalmente vir aqui limpar, aparar e polir este texto. Não tenho como, não agora. Talvez daqui a uns 20 anos e aí, com certeza, terei perdido o medo que agora tenho de suas arrogâncias e imperfeições e verei apenas seus brilhos, suas intuições e sua generosidade inata comigo e contigo. Era essa a maneira como viviam o amor, pensava ela sobre si própria, dividindo o mais íntimo segredo que possuíam, a angústia? Assim, houvera uma linda e grandiosa melancolia logo no início. Porque precisava ela ser o mais produtivo? E porque as palavras pareciam mais certeiras e definitivas quando acordavam no meio da madrugada e acomodavam-se sofregamente, sonolentamente na folha branca de papel? O ruído do lápis sobre o papel era visto em sobreposição à lembrança da imagem de dois ou três cadernos de capa azulada e dois lápis e um apontador que, me disseram antes de dormir, Hemingway utilizava para escrever. Foi bonito, mas um pouco desconstrutivo saber, ou mesmo imaginar. Para mim Hemingway era a cara da máquina de escrever. Como é fácil enganar-se com nossas imagens e com as dos outros. No final das contas, o que fiz foi digitar...