terça-feira, 31 de março de 2015

Desenhando ontem VII - Drawing yesterday VIII

Queria a linha do desenho mais sujo, mais rasurado possível. Que a linha desestabilizasse seu desejo mais primário e superficial, sua vontade de controle, os limites dos seus sabidos e de suas certezas. Desafiava, na rasura, a si mesma. O que seria de fato correr o risco no desenho? [...] Não ditos afirmados no silêncio às vezes ruidoso da linha, linha nada linear, linha de acaso, de rasura. Linha incontrolada, incontrolável. Havia rasgo no risco, abertura na rasura. A criação ocorria na perda do controle. Descobrir-se era atravessar sua própria superfície, sua imagem superficial refletida no espelho todas as manhãs quando escovava os dentes. A rasura parecia exigir a todo instante a distância. Distância do olhar para a paisagem do risco, dos traços. Não se acredita na força do risco ou do rasgo na presença do modelo ideal? Há mais potência na ausência, na completude do imaginário. Para ser alimento do espírito a arte deveria deixar de ser espelho. Algo de aleatório é necessário a qualquer imagem com força para mover de fato um novo olhar. Olhar de descoberta. (26/09/13)

O papel branco chegava a machucar seus olhos. O papel creme era o certo, o indicado; aquele que, diziam, absorvia o toque e a tinta. Nanquim. Achou que estava odiando, o papel absorvia tudo, tudo. Lembrou-se de Louise e sua fala sobre a decisão de abandonar a certa altura a madeira para trabalhar a pedra. A madeira aceitava tudo, era dócil, disse ela. A pedra? A pedra não. A pedra possuía resistência. Resistência: vontade própria. Era necessário negociar com ela, ouvi-la. Decidiu continuar com o papel comum branco. (3/10/13)

I wanted the most possible dirty line for my drawing. As if the line could unbalance my most primary and superficial desires, my desire to control as much as the limits of what I already knew and my own certainties. By erasing, by drawing line over line, over line, I was actually defying my own self. What would it actually mean to take risks when drawing? […] “Unspokens" revealed in the line silent noise, this non linear line, this casual line, this superimposing erasing drawing line. Uncontrollable line. There was a cut in risk, there was an opening in superimposed lines. Creation happened whenever control was lost. And to reveal my own self meant to transgress my own surface, that superficial image I would stare at  in the mirror every morning as I brushed my teeth. (September, 26/2013)

The white paper did almost hurt my eyes. Actually, a cream paper would be better for it was capable of absorbing touch, paint and ink. But I felt I was hating it, for the paper absorbed just everything, absolutely everything. It recalled me Louise and her speech about the decision to abandon wood at a certain point. Wood was too soft, it was too docile she sad, not the stone though. The stone was all about resistance. One could call its resistance its own will. It was necessary to deal with it, to listen to it. So she decided to keep the very plain letter size, white paper. (October, 3/2013)



sábado, 21 de março de 2015

Fagulha - por Ana Cristina Cesar

Abri curiosa
o céu.
assim afastando de leve as cortinas.
eu queria rir, chorar,
ou pelo menos sorrir
com a mesma leveza com que
os ares me beijavam.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio.

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.


terça-feira, 10 de março de 2015

a porta


Aquela porta abriu um mundo
porta que era muito mais do que uma porta
muito além de bege, laminada tábua de madeira...

A porta
não separava minha privacidade da tua
ela nos privava do mundo,
da cidade
da verdade.

A porta ali estava
inerte
calada
dividindo em dois
o silêncio estrondoso que vinha do outro lado
separando tuas mágoas mais profundas
de teu sofrimento incansavelmente negado.

Atrás da porta
uma estrela morreu
e a porta me deixou sem endereço
mas me ensinou:
moro no coração do mundo.

Atrás da porta dançavam
um segundo e um século inteiros
adentrando feito vento
teu triste perdido olhar
tua incredulidade
(medo de ser amado?)

A porta nos escancarou todos os nossos medos
nossos segredos mais mesquinhos
e todo desamor que persiste na dor que resiste.

A porta desde sempre soubera
quem éramos
quem seríamos
e me abriu por inteira
quando a abri.

A porta me virou pelo avesso
no avesso do avesso de minha pele
carne exposta
resposta para perguntas que nunca fizera.

E a força
- força que não é necessária para uma porta abrir,
minha não era.
A porta simplesmente abriu-se
tal flor que desabrocha derramando seu perfume sem pedir licença
inundando com seu aroma a tarde inteira
a vida inteira contida naquele abraço
(sim, o brilho do sol inundando teu quarto confundia-se com o perfume e o toque em meus cabelos, e aninhar-me fez-te sentir em casa e completamente grato).

A porta
simplesmente confirmou
que nenhum benefício se encontra em fugir da vida
que nenhuma garantia existe
onde feridas não sangram
e cama nenhuma
por mais cara, macia ou merecida
conforta a alma.

A porta
era o fiel do mundo.