Digressão temporal e ponto. Tinham a incrível
capacidade de colocar a nu o coração um do outro. Amavam e sofriam, beijavam mordendo e o
inverso na mesma medida. Para eles, comprar frutas nunca era apenas comprar frutas.
Nunca era comprar, era frutas. Entre eles havia fios de alta tensão: de medos,
de palavras, de escutas, de desejos. Ele lhe tornava imperioso, porque ela
assim o amava, ouvi-lo ultrapassando as orelhas de seus pensamentos e
sentimentos mais rasos. E esta escuta lhe pedia escrita. Às vezes, cartas,
outras vezes, isto. Porém havia certo medo – certa intuição de uma ideia de
traição na exposição nua nas folhas em branco. E pensava se deveria disfarçar,
esconder, fugir na escrita de si, escrevendo sobre o outro. Mas havia
generosidade, pensava. Era generoso o poeta que, ao acessar seus próprios
aspectos ou pulsões de origem subjetiva, ao torná-los impulso de criação, ao
referir-se a um si mesmo, a um eu ainda que fictício, não era, por
escolha, apenas um simples os outros.
Escolher falar de si, falar como si, opunha-se à escolha de um eles que destensionaria a relação entre
o sujeito e o mundo. Diluíam-se as angústias ao terceirizar-se o olhar, ao
apresentar o sentir do humano como algo que é visto de fora por alguma
consciência ou deidade sobre-humana. Não, não; era humano o sofrimento. Humano
e sofrimento, ponto. A angústia, afinal, só é apresentada em toda sua funesta
e densa dimensão quando se trata de nossa própria angústia. Nada se parece mais
com a leitura de seu próprio diário – tenha ou não já sido escrito – que a
narrativa da angústia em primeira pessoa. Não, nem pense que depois disso vou
profissionalmente vir aqui limpar, aparar e polir este texto. Não tenho como,
não agora. Talvez daqui a uns 20 anos e aí, com certeza, terei perdido o medo
que agora tenho de suas arrogâncias e imperfeições e verei apenas seus brilhos,
suas intuições e sua generosidade inata comigo e contigo. Era essa a maneira
como viviam o amor, pensava ela sobre si própria, dividindo o mais íntimo
segredo que possuíam, a angústia? Assim, houvera uma linda e grandiosa
melancolia logo no início. Porque precisava ela ser o mais produtivo? E porque
as palavras pareciam mais certeiras e definitivas quando acordavam no meio da
madrugada e acomodavam-se sofregamente, sonolentamente na folha branca de
papel? O ruído do lápis sobre o papel era visto em sobreposição à lembrança da
imagem de dois ou três cadernos de capa azulada e dois lápis e um apontador
que, me disseram antes de dormir, Hemingway utilizava para escrever. Foi bonito,
mas um pouco desconstrutivo saber, ou mesmo imaginar. Para mim Hemingway era a
cara da máquina de escrever. Como é fácil enganar-se com nossas imagens e com
as dos outros. No final das contas, o que fiz foi digitar...
terça-feira, 23 de maio de 2017
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