Eu devia ter uns 13 anos mais ou menos. Lembro que foi na época em que a minha melhor amiga se chamava Roberta e eu estudava em uma escola municipal. Da escola até a minha casa eram uns dois quilômetros, caminhados diariamente para ir e para voltar. Da época em que, obviamente, havia uma menina mais popular, fina bonita na escola, chama-se Juliana, para testar meu amor próprio. Acho que não passei no teste.
Deve ter sido num sábado à tarde, como hoje. Mas isso afinal não faz muita diferença. Há dias, seja em que dia da semana sejam, que são sábados à tarde. Têm o universo de possibilidades e promessas dos sábados, são levemente melancólicos, embora não tão depressivos quanto os domingos à tarde...
Naquela época, também a casa dos meus pais era incompleta e a porta dos fundos estava exposta à todas as interpéries.
Naquela tarde minha amiga Roberta apareceu, de carona em uma carroça. Não me lembro se cheguei a ver a carroça de dentro de casa. Se o fiz, devo tê-lo feito enquanto lavava a louça do almoço. Afinal, a janela da cozinha ficava em frente à pia. Da pia da cozinha da casa de meus pais via a paisagem. A pia da cozinha tinha a melhor vista da casa. A mais ampla, a que descortinava a rua e o morro em frente. Tão diferente da casa com a qual havia sonhado. A casa projetada e que nunca foi construída que era toda voltada para os fundos. Na casa real, na casa possível, na casa construída, a janela para a frente era a janela da cozinha. Talvez aquela janela tenha feito de mim a pessoa divagante e observadora que sou. Afinal, eu era a encarregada de lavar a louça mais trabalhosa e em maior quantidade – pelo menos foi isso que sempre pensei – a louça do almoço. Da janela da cozinha, lavando todos os dias a louça do almoço, via a rua, via o morro. Via as janelas minúsculas da casa do colega mais inteligente da turma. Por ele eu estava interessada? Não sei. Talvez sim, de alguma forma. Ficava divagando que ele, moço de nome composto feito mocinho de novela mexicana, também podia enxergar minha janela. A minha janela vista da janela dele...
Pois naquela tarde, mais ou menos assim ou não, pois não lembro ao certo como foi, mas tenho certeza de como poderia ter sido, chegou Roberta de carona na carroça.
Na carroça de um outro colega, cujo nome durante anos não consigo relembrar, que, naquela tarde soube, estava “afim” de mim. Engraçado dizer que ele estava a fim, ou seria afim, de mim considerando que esta não era a expressão usada na época. Mas, escondida da vista da frente da casa, na porta exposta dos fundos, conversei com Roberta. E Roberta me disse que ele, o colega, havia passado em sua casa, e havia pedido a ela, que viesse até minha casa, para que eu soubesse, que ele estava afim de mim. Congelei na porta. E, lembro vagamente, disse a ela qualquer coisa que incluía uma negativa, um não.
Pela janela, creio, espiei enquanto a carroça se afastava com ele e com Roberta. Enquanto a carroça diminuía e minha culpa aumentava...
A culpa de dizer não. Não à carroça, não ao menino humilde, não a alguém que havia demonstrado interesse por mim? Não sei. Somente sei que foi um não. Um não cheio de culpa, um não envergonhado. Um não sem noção.
Quase trinta anos se passaram. E hoje é sábado. E foi numa conversa de sábado à tarde que percebi. Percebi ao voltar para casa. Minha casa cuja janela da cozinha avista a sala de jantar e a sala de estar. Minha casa estranhamente ambígua. Minha casa voltada para ela mesma e ainda assim para fora. Depois de sair pelo bairro e andar a esmo com uma amiga e conversar com ela sobre a casa onde me sinto em casa. Que é outra casa cujas janelas divisam o ponto de fuga de uma longa rua que acaba em praça, mas isso, quando olhamos de lado, de frente, pelo menos da cama em cujos braços me sinto em casa no universo, diviso a torre de uma Igreja. Igreja anexa a uma escola e a um abrigo de loucos... mas isso é outra história.
Em todo caso, depois da conversa com ela. E depois de ter percebido que preciso dizer um outro não. Um outro não para outra pessoa que tantos anos depois me provocou o mesmo sentimento de constrangimento. E depois de perceber que meu constrangimento era apenas a vergonha pela minha própria vergonha, percebi:
Ser feliz é não ter vergonha de sua própria vergonha!
Tenho direito ao não. Se o não foi correto, ou errado, cheio de medo ou legitimamente intuitivo de um outro futuro que quero para mim, tenho direito ao não. E tenho direito à vergonha. Tenho direito aos meus medos, tanto quanto aos meus desejos. Tenho direito à minha sabedoria, tanto quanto à minha ignorância. Tenho direito à vergonha, tanto quanto ao amor. Amanhã, ou depois, preciso dizer a outra pessoa – não. Mas, curiosamente, poder dizer este não me libertou da culpa de um não que carrego ha tantos anos.
Talvez, finalmente, possa deixar a Roberta ir embora de carona na carroça!