quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Aquele dia de faxina

Aquele dia de faxina não foi um dia, foram décadas. Foram semanas a semanas de aulas preparadas, de textos lidos, relidos, anotados, fotocopiados, grifados, digeridos, comentados. Aquelas pilhas, mais pilhas e ainda outras pilhas de papéis. De perguntas, respostas, interrogações e refrações. Foram idos, vindos, passados seus e de mais alguém. Foram dias escaldantes, refrescantes. Todo aquele pó lhe varria lembranças. E a ansiedade de futuro lhe enchia braços e pernas – jugular – de energia. Buscar, separar, retirar, entregar pro lixeiro, pra vida. Havia urgência no sentido que as caixas e sacos tomavam. Decidiu num ímpeto suave que lhe veio que era necessário, que a hora era agora. Decidiu sem pestanejar, sem hesitar. Decidiu decidindo não lembrar, não revisar, apenas desfazer-se. Desfazer-se de tanta coisa que acumulava pó, exigia espaço, demandava tempo. Tanto peso morto. Aquele dia foram semanas de preparação, de abertura, de doçura. Respirava imensamente com cada caixa vazia, cada lembrança pra sempre sepultada, guardada apenas dentro de si mesma. Decidiu não protelar mais o futuro, não deixar pra lá os planos, os sonhos menos evidentes. Aqueles que não tem endereço certo, que não tem lugar definido, aqueles que somente são paisagem da alma. Mas foram dias e horas cerimoniosas, luminosas. Havia algo grave e doce na entrega do que havia recebido. Do que já havia conhecido. A reciclagem era sua, não era de papéis, livros, cds, revistas, roupas, caixas, caixinhas, caixões. E quanto mais se ia, mais desejava ir. Mais desejava deixar pra lá. Aquele dia de faxina, ah aquele dia de faxina. Memorável dia, sem foto, sem registro, sem papel. Dia de derreter por fora e por dentro. Dia de um desejo imenso de imensa casa vazia. Desejo de não ter quase o que colocar nas malas fosse pra onde fosse. Dias de encontrar aqui e ali um desenho esquecido. De tirar do lugar de honra uma lembrança que não servia mais. De achar aquele teu texto sobre o silêncio que te importava tanto vinte anos atrás quanto hoje. Silêncios cheios de música de faxina: histórica, mental, emocional. Dias de morte de roseiras. Semanas escaldantes de jasmim em botão.

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