Não havia nele um
pingo de sutileza investigativa. Talvez justamente porque era disto que se
tratava: investigar as sutilezas mais inauditas, as mais tênues. Ela, por outro
lado, era especialista na organização de todos os ditos, papéis e
números inclusive, que faziam parte de suas vidas. Completavam-se de maneira ímpar. Mas, às
vezes, ela estava em momento de sequer intuir que certas sutilezas indeléveis na
vida havia. Enquanto isto, dele os papéis se acumulavam e a cozinha se tornara
o reino abandonado da profusão de potes plásticos. Ela, eles achavam, era capaz
até de prever o futuro, mas nem sempre sabia se era nele ou no passado que
estava encantada, se era por estar absolutamente presente na profundidade de
seu agora. Mas havia, às vezes, esses momentos em que ela conseguia perceber
exatamente onde ele estava, ou estivera um dia. Estaria amanhã. Chegavam-lhe
como brisa que entra de repente pela janela. Como o frescor brilhante das
manhãs de primavera. Chegavam-lhe recheados de palavras que às vezes se
organizavam e encontravam lugar rapidamente sobre o papel. Havia algo de
epistolar entre eles, ele dissera certa vez. E outras vezes, escreviam cartas.
Mas havia também aqueles momentos – eras que eram por vezes – em que estavam em
lugares absolutamente distantes, incomunicáveis. A vida era mais simples para
os amantes, encontravam-se simplesmente na carne. Eles tinham uma vida marcada
por desencontros e momentos iluminados que ainda não controlavam. Ela se
perguntava, enquanto escrevia, porque parecia que melhor entendia quando
transferia, como se não falasse de si, embora de algum em si o começo da frase
sempre partisse. Ainda não havia encontrado teoria literária que lhe explicasse,
talvez nem fosse preciso. Precisaria? Entender por que sua escrita era recheada
de tantas oposições, tanta indeterminação, tanta instabilidade. Recheava-se de
por outros lados, talvezes e sempre que ele começava (senão, geralmente) uma
conversa íntima entre eles, sua primeira resposta era: – Não sei. Lembrava,
porém, de não ter dito não sei quando ele lhe dissera que não queria uma relação
à distância. Ao invés disso lhe perguntou: – O que sugeres? E ele de alguma forma respondeu: –
Acho que devemos morar juntos. Meter os peitos, ou melhor, dar um peitaço, ele
disse. Mas havia intranquilidade naquele peito, ela sabia. Ele nem sabia de
suas limitações a quilômetros de distância. Daquela cerca que ele criara para
se proteger da vida e da qual raramente saia. Costumeiro era vir ao seu
encontro como se carregasse uma mala em cada mão. Não, não eram malas de sua
mudança. Ou eram. Numa carregava suas dores passadas que ia descobrindo pouco a
pouco. Na outra havia alguma dose de desejo embaralhada com um resto de esperança.
Às vezes ela tinha a impressão de que a esperança dele era apenas um conceito.
Não chegava a ser uma esperança molhada daquelas com que a gente encharca o
peito. Gostavam tanto de água, de nadar sob o céu azul ou mesmo no céu nublado.
Ela achava-se especialista em porta-malas e bagagens. Achava sempre um jeito de
fazer tudo caber dentro do espaço que podia carregar. Organizava papéis e
armários. Mas ele, ele parecia estar mais próximo dela – pelo menos ela assim
sentia – quando ela se desprendia de qualquer coisa, de quase todas as coisas.
Quando mais do que desejar, de fato saía de casa sem bolsa e até sem chave.
Coisa que só era possível quando com ele estava. Ele não gostou. Lhe chamou a
atenção a certa altura para o fato de que ela deveria carregar suas próprias
chaves. Num plano bem prático, ela ficou triste por ver-lhe reivindicando que
não tivesse tanta liberdade. Mas sabia da profundidade das metáforas presentes
nos pequenos atos do dia a dia e entendia perfeitamente agora o que ele de fato
lhe dizia. E, como sempre, em alguma medida, ele tinha razão. Como sempre, em
alguma medida, ambos tinham sempre razão. Mas desconfiava também que era por
vezes razão demais. Poderia ser diferente? Talvez, à medida em que ela o
ajudasse reorganizando as malas, separando os conteúdos em sacos e sacolas
menores, dividindo o peso, diluindo a intensidade. Talvez lhes ajudasse se ela
pudesse também organizar – sem pressa, sem precisão – sem necessidade
imperiosa, seus armários. Essa parte sim seria difícil. Havia dois armários de
roupas na casa, era um apartamento de fato, mas como falar do lugar em que mora
o coração com essa palavra? Para ela o lugar deles era e seria para sempre
casa, mesmo que morassem em um apartamento em andar baixo, em prédio sem
elevador, bem pé no chão. Continuava, curiosamente, a sonhar com o que ele
chamava de sobreposição de tempos: o apartamento dela e o dele miscigenados.
Talvez acontecesse porque ela nesse momento numa casa morava. Esta, porém
raramente era seu lugar de encontro. Encontravam-se, de fato, no apartamento
dele. Algo chato, ela pensava. Afinal, era uma casa que desejavam. Uma casa antiga
talvez com aqueles maleiros amplos de armários embutidos. Seria por isso que
ela tanto gostara daquele primeiro apartamento em que com ele morara? Ele lhe
recebera tão aberto naquela vez. Abandonara, para as coisas dela, um armário
inteiro. E ela, em retribuição, organizou para ele o armário porta,
armário-quarto da cozinha. Maleiros que apenas existiriam para colocar malas
vazias. Malas recheadas de desejo sem peso de futuro, com futuro sem peso de
desejo.
"[...] abandonar a pulsão do saber, e contentar-se do savoir-faire. A personagem submete sua inteligência ao fazer, ou melhor, ao savoir-faire, que está na base ao mesmo tempo de qualquer construção artística e de nossa convivência com o inconsciente. Em outras palavras, a razão se submete às mãos ou ao corpo considerado como uma força de fora, para descobrir o enigma escondido no rochedo. O gozo do corpo na arte não esconde mais, mas anuncia a verdade artística. Reviravolta total da situação." Philippe Willenmart